sexta-feira, 8 de abril de 2016

A cobaia

O revólver segurava Francisco. O pedaço de metal preto fosco era o que poderia trazer o fim à traição, mesmo que de forma tão covarde. Esperou que Artur passasse e saindo de um umbral apontou a morte para a nuca do homem que esperava o sinal de pedestre mesmo que não houvesse nenhum carro vindo. São vinte duas horas e trinta e quatro minutos, na avenida Contorno. O covarde ainda hesitava, seu dedo no gatilho era tensionado pelo tendão e logo era solto. O sinal abriu e sem nenhuma cerimônia o rapaz que aguardava começou a travessia. A face de Francisco se contorceu, como o de um menino prestes a soltar o elástico em direção ao rosto de seu melhor amigo, prendeu o ar, o fôlego durou até faltar exatamente uma faixa branca antes do passeio e o disparo aconteceu. Uma gargalhada brota no ar dentro de um carro que atravessa o sinal, acertando a perna esquerda de Artur que completava sua travessia, o tirando da trajetória da bala. A bala acerta o motorista, o carro bate no poste do outro lado da rua. Francisco fica exatamente vinte e cinco segundos parado atônito, guarda a arma e então corre.
Parecendo perdido pelas avenidas da cidade resolve pegar um ônibus, sentado ele movimenta a cabeça de um lado para o outro, murmura algumas coisas em direção ao vidro. Vai até o parque aonde existe um descampado, enterrará lá a arma do crime. Atravessando o portão principal a passos largos sobre os tijolinhos laranjas que compõe a interferência do homem naquele ambiente. São vinte e três e quarenta e sete quando começa a chover. Para chegar ao local desejado ele precisa entrar em uma trilha na floresta, perto da praça aonde há duas gangorras e um balanço. Atravessa e o descampado aparece, agachado ele remexe na terra, cava com as próprias mãos. Seus gritos de esforço se fazem ouvir a pelo menos cinquenta metros dele. A chuva se intensifica enquanto ele recoloca os tufos no chão. Terminado o trabalho um pedaço do céu parece se desprender e uma figura translúcida desce do alto. O grito de horror é mais alto que os de esforço porém ele não consegue se mexer. Um cubo menor que a palma da mão é entregue à Francisco que desmaia ao toque do enviado de outro planeta.
Ele acorda na manhã seguinte sem noção alguma de como aquele artefato foi parar em sua mão, feito de um material indescritível e imperceptível aos olhos. Suas manhãs, tarde e noites eram olhando o objeto que, ninguém mais enxergava e ele não deixava ninguém encostar. Carlos, irmão de Francisco, com medo o internou em um hospital psiquiátrico.
Francisco acorda, o ambiente com cheiro de álcool e as paredes brancas incomodavam mas ele já não gritava ou agredia. Agora ficava apenas fixado no objeto escondido em sua mão. Comia para os enfermeiros não o encherem com perguntas e tomava pílulas variadas. Sentado em sua cama sentia o cubo que ganhara à sete anos atrás, todos ali dormiam, resolveu então, à luz do luar, olhar o objeto. As luzes das estrelas trespassavam o cubo, começando a se ligar. As oscilações das luzes o fizeram lembrar uma noite estrelada. Uma noite que ele queria tirar de sua mente.
A noite em que ele brigou com seu irmão pela compra da Glock 25 e a caixa de balas, Francisco saiu do apartamento que os dois dividiam. Encontraria Aline, a única capaz de entendê-lo. Aproximou-se da casa de sua namorada, entraria devagar pela janela do quarto, pois não queria acordar seus sogros. Entretanto, a visão que teve não foi muito digna, Artur entrara antes dele e Aline o ajudava a subir. Olhou perplexo para os próprios pés, viu a noite estrelada se tornar uma confusão, passou em claro a madrugada, não conseguiu dormir de modo nenhum. Sua cabeça repassava os fatos vistos. O ódio se instaurava em seu coração, nunca fora capaz de confrontar pessoas diferentes de seu irmão e seus pais. Abaixava a cabeça para qualquer um, sentia-se inferior. Aquele sentimento era forte demais, e ligou as engrenagens empoeiradas da atitude. Durante o dia planejou os movimentos, encontrou seu amigo e sabia que ele iria para um bar, sabia o trajeto. Lembrava de como se sentiu segurando uma arma pela primeira vez. Voltando ao presente ele chorava, se arrependia de tudo, desejava em seu íntimo não ter disparado contra ninguém. O sentimento canalizou, o objeto indescritível.
Um buraco no espaço-tempo se abriu e o jogou as vinte duas e vinte, a sete quadras da avenida Contorno, aonde ele esperava escondido embaixo do umbral da porta de uma loja de portas. O cubo havia dado a consciência de que ele acabara de voltar no tempo, ainda em suas roupas de hospital divisou o relógio eletrônico. Fez as contas na sua cabeça e viu que não daria tempo de se impedir se fosse correndo. Buscou alguma outra forma. Um carro abastecia no posto próximo ao seu campo de visão, Correu até lá, roubou o carro. Dirigia. Sentia se livre, livre de todo aquele pesadelo do hospital e com a oportunidade incrível de poder desfazer tudo aquilo que queria, se sentiu tão livre que errou a primeira entrada para a rua desejada. Era só entrar na próxima e já estaria em uma rua perpendicular ao destino desejado, acelerava o carro, não prestava a atenção no sinal que ficou vermelho a trinta metros, viu então Artur a vinte metros, atravessando a faixa de pedestres. Novamente rilhou os dentes e continuou com a aceleração, a dez metros foi como se uma luz matutina que entrasse por uma janela que acabara de ser descortinada, lembrou de tudo com perfeição. Tirou o pé do acelerador e soltou uma gargalhada quando o estrondo do acerto na perna esquerda de seu melhor amigo atingia seus ouvidos, junto com a bala disparada por um homem que buscava uma vingança.
Metros a cima da camada de ozônio em uma nave, um dos extraterrestres olhava o monitor. Ligou sentença de autodestruição do bloco que o faria dissolver na chuva que eles mandariam, obtiveram os dados do bloco que tinham que entregar. O tempo tem um mecanismo de defesa contra o paradoxos, teriam que continuar experimentando com os humanos, para testar os limites da terra.

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